- Author, Mariana Alvim
- Role, Enviada especial da BBC News Brasil a Santiago do Chile
A agenda conjunta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com o mandatário chileno Gabriel Boric terminou nesta terça-feira (6/8) em Santiago com poucas palavras sobre o assunto que pairava na atmosfera do encontro bilateral: a situação política da Venezuela.
Mesmo com poucas declarações a respeito do tema, ficaram expostas as diferentes posições dos esquerdistas Lula e Boric a respeito da crise no país vizinho, desencadeada pela vitória de Nicolás Maduro declarada pela autoridade eleitoral, mas contestada pela oposição, que cobra a divulgação detalhada dos dados de votação.
Lula manteve o foco no papel de mediador que o Brasil deseja ter na crise, enquanto Boric repetiu o tom crítico com respeito a Maduro, mencionando que os direitos humanos devem ser respeitados em todo lugar, inclusive na Venezuela.
A crise venezuelana não foi mencionada na nota conjunta emitida pelos dois governos sobre o encontro.
O documento abordou, além dos acordos bilaterais e assuntos de interesse comercial dos países, manifestações sobre as guerras em Gaza e na Ucrânia — mas nada sobre a contestação da reeleição de Nicolás Maduro que provoca protestos no país vizinho.
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No primeiro dia do encontro, na segunda-feira (5/8), Lula abordou a situação venezuelana rapidamente em seu discurso no Palácio La Moneda, sede do governo chileno.
"Expus [para Boric] as iniciativas que tenho empreendido com os presidentes Gustavo Petro [Colômbia] e Lopez Obrador [México] em relação ao processo político na Venezuela", relatou Lula, em declaração à imprensa, sobre a reunião com Boric.
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"O respeito pela tolerância, o respeito pela soberania popular é o que nos move a defender a transparência dos resultados. O compromisso com a paz é que nos leva a conclamar as partes ao diálogo e a promover o entendimento entre governo e oposição," seguiu.
Durante o evento com Lula, Boric afirmou que falaria do assunto nesta terça, mas acabou por não fazê-lo, ao menos na agenda com o presidente brasileiro, que terminou na hora do almoço.
Na segunda à noite, no entanto, Boric fez uma nova declaração sobre Venezuela na rede social X, antigo Twitter.
O presidente chileno condenou a investigação do Ministério Público venezuelano contra Edmundo González, que disputou a eleição contra Maduro, e María Corina Machado, que lidera a oposição no país.
“Pedimos respeito aos direitos humanos de manifestantes e de líderes da oposição”, escreveu Boric.
"Agora o regime de Maduro anuncia uma investigação criminal contra González e Machado, enquanto reprime seu próprio povo, que exige que se respeite a sua vontade, expressa democraticamente", seguiu o presidente chileno.
Na mesma noite, em discurso durante evento empresarial, Boric mencionou a Venezuela rapidamente, dizendo que a defesa irrestrita dos direitos humanos deve valer para "o Chile, para o Brasil e com certeza para a Venezuela, nesses dias difíceis que estão passando".
Uma fonte da diplomacia brasileira com quem a BBC News Brasil conversou garantiu que, durante a agenda conjunta dos presidentes, o assunto Venezuela foi minoritário — embora não se saiba o que foi tratado na conversa privada de ambos.
De acordo com outra fonte diplomática, houve uma menção rápida de preocupação com a situação da Venezuela por ambas as partes em uma reunião ampliada na segunda-feira, que incluiu ministros, assessores e diplomatas.
Publicamente, o assunto teria sido pouco abordado pelos mandatários para não ofuscar a agenda positiva. Lula enfatizou, nos bastidores e nos discursos, a retomada da relação diplomática bilateral e multilateral, contrapondo-se à política externa do governo de Jair Bolsonaro.
O encontro Brasil-Chile foi acompanhado por eventos paralelos, como um Fórum Empresarial com empreendedores dos dois países e uma reunião entre parlamentares chilenos e brasileiros.
Dezenove acordos e memorandos foram assinados em várias áreas, como turismo, saúde e tecnologia — quatorze ministros do governo Lula vieram ao Chile.
O tratado de extradição entre Brasil e Chile, que até então era da década de 1930, foi atualizado. Além disso, os presidentes indicaram a intenção de entregar no primeiro semestre de 2025 a chamada rota de Capricórnio, uma rodovia que integra Mato Grosso do Sul, Paraguai, Argentina e Chile.
Não há informações sobre por que o Chile, que teve sua representação diplomática expulsa de Caracas após declarações críticas de Boric, não pediu a ajuda do Brasil para mediar a situação e assumir a custódia da embaixada, como ocorreu com a Argentina e o Peru.
'Nós somos diferentes e isso é extraordinário'
Desde o início da crise na Venezuela, os presidentes de Brasil e Chile firmaram posições distintas a respeito da situação política do país.
Enquanto Boric afirmou ser “difícil acreditar” na vitória de Maduro, Lula cobrou a divulgação das atas de votação, mas chegou a dizer que o questionamento do resultado pela oposição era uma situação “normal” que a Justiça do país poderia resolver.
Em seu discurso no Palácio La Moneda, após o encontro com Boric, o presidente brasileiro afirmou, sem mencionar diretamente a crise na Venezuela, ser natural que haja divergências entre países.
"Cada país tem a sua cultura, cada país tem seus interesses, suas nuances políticas. A gente não pode querer que todo mundo fale a mesma coisa, pense a mesma coisa, nós não somos iguais”, disse Lula.
“Nós somos diferentes e isso é extraordinário, porque a diferença permite que a gente procure encontrar nossas similaridades, as coisas que nos ajudam."
Mais tarde, ao ser questionado por jornalistas na saída do hotel onde estava hospedado sobre o fato de González ter se declarado presidente eleito, Lula retrucou: "O cara nem tomou posse e você quer que eu fale".
Segundo um diplomata que atua nas negociações relacionadas à crise política na Venezuela ouvido pela BBC News Brasil, a aposta principal da diplomacia brasileira é a articulação com Colômbia e México para abrir diálogo entre governo e oposição.
Os dois países têm governos de esquerda que mantêm relações com a Venezuela. Junto com o Brasil, divulgaram na sexta-feira (2/8) uma nota se oferecendo "para apoiar os esforços de diálogo e busca de acordos que beneficiem o povo venezuelano", mas sem detalhar como isso se daria.
A intenção, disse a fonte ouvida pela BBC News Brasil, é promover um encontro de alto nível, entre os chanceleres dessas nações, ou mesmo entre os presidentes. Nesse segundo caso, o encontro poderia ser virtual.
A principal dificuldade, porém, é convencer Maduro a participar desse diálogo, reconhece o diplomata. Já a oposição está mais aberta a negociar.
Para o cientista político chileno Patricio Navia, professor na Universidade Diego Portales e na Universidade de Nova York, as diferenças entre Lula e Boric em relação à Venezuela refletem não só as diferenças geracionais entre os dois líderes de esquerda, mas também os papéis diferentes de Brasil e Chile na região.
Ele destaca a grandeza da população, do território e da economia do Brasil, em contraste com o tamanho do Chile — apesar deste, em geral, ter índices sociais melhores.
"O Chile não pode ser um ator internacional. Se o presidente do Chile disser algo, ninguém vai prestar atenção. Se o presidente do Brasil fala, prestam atenção, porque é o maior país da América Latina. Então, o Brasil entende o seu papel no mundo."
Dawisson Belém Lopes, professor de política internacional e comparada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), aponta também para o fato de que o Brasil divide fronteira com a Venezuela, o que não é o caso do Chile.
"O Brasil tem de lidar com esse vizinho de forma mais direta. No caso chileno, você pode até argumentar que o Chile tem hoje que lidar com uma leva grande de imigrantes venezuelanos, mas é mais indireto."
Lopes aponta que uma eventual ruptura com a Venezuela traria problemas para o Brasil em várias esferas, como em questões energéticas, de controle de fronteiras e combate à criminalidade.
"[São questões que] Envolvem no fim das contas a própria perspectiva de uma integração regional, que é um dos sonhos do Lula para o seu terceiro mandato: reintegrar a América do Sul", afirma o professor da UFMG.
"Enfim, o Brasil também é um país maior, é mais importante para o equilíbrio da região. O Brasil precisa ser mais cauteloso e pragmático. O custo para o Boric fazer os seus discursos e ser principista [privilegiar princípios morais] custa muito menos do que para o Lula. Para o Lula, o custo é muito alto", conclui.